Texto de LUIZ ROBERTO DALPIAZ RECH
Dias desses resolvi visitar o “Marreco”. Pensei comigo,
visitá-lo durante a semana será um desperdício, afinal, o trabalho na roça não
tem descanso. “Marreco” deve estar removendo a terra com arado de bois,
realizando alguma roçada, ou simplesmente, limpando o feijão preto em alguma
roça do morro.
Enganei-me. Ao chegar às proximidades da casa já o avistei,
sentado a varanda, olhando firme o horizonte.
Comentei com a minha esposa. O “marreco” só pode estar
doente para estar assim, plantado que nem pé de couve. Mal estacionara o carro,
fomos recebidos com euforia pelo guaipequinha faceiro, que contrastava com o
semblante sério e sizudo do tio agricultor.
Depois de um – “sai pra lá vinagre” - meio anasalado, o
“marreco” veio em nossa direção a passo lento, mas, com ares de decidido.
- Pués então sobrinho, que ventos te trazem aqui?
- Saudades da terra e de todos, tio “marreco”, respondi.
- Pués então, tchê, mate logo a saudades antes que eles nos
expulsem daqui.
- Como assim tio, quem é que quer te expulsar, se a casa é
tua, a propriedade também (foi herdada do meu avô), não estou entendendo,
afirmei.
- Mas então tu não sabes? – perguntou, meio assombrado. - Tá
todo mundo dizendo que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio
ambiente.
“Veja só: o sítio de meu pai, que agora é meu, fica a 17 km
da cidade. A água do poço daqui lembra? Limpa, pura, que a vovó servia pra ti e
os primos, nos arretouços da infância? Pois é a mesma água com que ela criou 5
filhas e seis filhos. Não faz muito, um homem do governo passou aqui e disse
que tenho que fechar o poço, fazer uma tal de outorga, pagar umas taxas e mais
um monte de coisas.
Eu lhe disse: – Moço, mas foi meu pai que cavô... E ele
respondeu: é um caso de saúde muito sério! - e foi embora.
Sem falar na produção do fumo, sobrinho. Antes, eu, a mulher
e tua prima Lia, dávamos conta do recado, mas tive que mandar a Lia pra cidade,
depois que vi uma reportagem na televisão: eu podia ser acusado de exploração
de menor! Já pensou? Ela me ajudava muito no cultivo do fumo; ficando sozinho,
tu sabes como tudo é trabalhoso, arar a terra, preparar as mudas, plantar,
colher, secar na estufa, fazer manoco, prensar, tive que contratar um ajudante.
Ainda te lembras do Rui? Pois é, se foi para cidade e pediu trabalho para o
filho dele, que não tinha nem onde morar. Assinei-lhe a carteira, como manda a
lei. E dei-lhe o quarto da nossa filha. Faceiro, que nem gringo de tamanco
novo, já fazia parte da família. Mas vieram umas pessoas da Delegacia do
Trabalho, e falaram que se o empregado (para mim - um filho!) fosse cuidar da
estufa à noite, tinha que receber adicional noturno, e que não podia trabalhar
nem sábado nem domingo. Tu já trabalhaste no fumo, né, sobrinho, então tu sabes
do que estou falando. Como é que vou desligar a estufa e parar a secagem nos
finais de semana? Ele também me ajudava no leite, que é outra fonte de renda
aqui em casa, garantida pela Cooperativa que compra a produção. Como vou dizer
pra vaquinha que agora o leite tem dia e hora pra ela soltar?
O pessoal da Delegacia do Trabalho foi examinar o quarto do
empregado. Acharam a cama curta, claro, era da minha filha, menor que ele.
Olha, sobrinho, se ele ficava com os pés de fora, pra mim nunca se queixou!
Ainda bem que eu tinha trocado, uns dias antes, o lampião a querosene pela luz
que recém chegou através do programa do governo, senão iam me processar por
isso também.
Sabe a comida gostosa que tua tia faz? O Vanil, nosso
empregado, comia com a gente na mesa (era, como eu disse, da família!).
Explicaram-me que, por lei, a comida tinha que integrar o salário dele. Quando
foram embora, cheio de tristeza, chamei o Vanil e não contendo as lágrimas, o
despedi. No outro dia ele pegou o ônibus e foi pra cidade. Depois, disso, a
última notícia que tive dele é que foi parar numa delegacia, o agrediram e
ficou deficiente de um ouvido.
Sem a ajuda do Vanil parei com o fumo. Comprei mais uma
vaquinha e a mulher ajuda, apesar das dores que adquiriu nas cadeiras e da
bexiga caída desde que ganhou a nossa filha. Às 5 da manhã eu levo o tarro até
a estrada e espero pacientemente o caminhão da Cooperativa. Se chove, nem saio
de casa. O riacho enche e quem se diverte com o leite são os porcos. Melhor, se
divertiam, hoje o leite vai todinho fora.
Agora, vieram outros homens aqui, e um policial, dizendo que
eu tinha que encerrar a criação de porcos, pois o chiqueiro estava a menos de
20m do riacho. Deram-me um prazo para resolver o problema. Medi aqui, medi ali
e nada de conseguir chegar aos 30 metros exigidos. Ganhei uma multa tão pesada,
que nem a nossa mula podia carregar! O dinheiro da venda dos porquinhos, das
tábuas e das telhas foi insuficientes para pagar. Tive que recorrer a uma
poupancinha da minha filha, que juntara durante anos para quando casasse. Deu
processo, fui chamado pelo promotor. Tive que levar junto um advogado, tentei
lhe pagar com o leite da Malhada e meia dúzia de ovos da Marilu, mas ele não
aceitou. Ainda bem que a Cooperativa me salvou de novo. Condenado, tive que
pagar 2 cestas básicas e dar para uma comunidade carente. Disseram que eu
estava poluindo o rio e poderia até ser preso.
Já pensou eu na prisão, sobrinho? O que iam dizer de mim na
comunidade? Com que cara eu iria à missa aos domingos, à cancha reta, ao jogo
do osso? Eu seria capaz de cometer uma bobagem!!
Então eu te pergunto: lá onde tu moras, na cidade grande,
também tem rio, riacho ou coisa parecida? Tem! Quer dizer que cada um que joga
alguma coisa no rio também é multado? Coitada dessa gente! Se aqui é assim,
imagina lá. Deve ter muito mais gente multada, e não deve existir nenhum tipo
de lixo...
Só sei que aqui no mato a gente não pode sujar o rio. Muito
menos cortar uma árvore, tirar um cabo de ancinho, de enxada ou de machado sem
autorização do pessoal do batalhão ambiental.
Noutro dia multaram o Nozari. Lembra do Nozari, né, que
estudou contigo? Jogava uma bola! Ganhando um dinheirinho na cidade, voltou pra
cá pra cuidar da terra do falecido pai dele. Pois então, juro pelos meus olhos:
ele levou uma multa do batalhão, tão grande, que nem vendendo tudo o que tem na
vida paga a metade dela. É um dinheirão. Ele até contratou um doutor para
recorrer. O crime dele foi querer plantar. Tinha que ver o desencanto dele. Chegou
a dizer pra mim: “marreco”, eu não sabia que não podia aumentar a área da minha
rocinha. Se pelo menos tivesse falado no colégio o meu filho teria avisado.
E, para variar, comigo aconteceu algo parecido com o Nozari.
Sabe aquele pinheiro que o tio Arcanjo havia plantado? Pois é, resolvi
aproveitar a madeira antes que destruísse o nosso galpão.
Ressabiado, fui até o batalhão pedir autorização. Preenchi
uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer o tal de laudo e, então,
autorizar o aproveitamento da madeira. Passou uma semana, duas, três e nada.
Cada ventinho que batia eu via o galpão vindo abaixo com a queda do pinheiro.
Um dia falei pra mulher: chega de esperar e meti o machado nele! Dito e feito.
Parece que o pessoal do batalhão ouviu o estrondo da árvore e no dia seguinte
apareceram pra me multar. Logo pensei no caso dos porcos, no promotor, nas
cestas básicas. Passei uns três dias tomando chá de laranjeira para me acalmar.
Pensei: se a multa for que nem a do vizinho vou ter que vender o sitio para
pagá-la. Se não pagar me processam e ainda sou capaz de perder a terra e tudo o
que consegui até hoje. Não quero ficar com uma mão na frente e outra atrás que
nem o Antonio. O caso dele não foi por causa dos homens do batalhão, mas por
ter comprado um tratorzinho. A coisa não andou como ele queria, muita seca,
produziu pouco e não conseguiu pagar o financiamento. O Banco não perdoou. Sem
a máquina, ele vai ter que arar com os bois. É mais trabalhoso e lento, mas
fazer o quê!
Tou preocupado sobrinho. Dizem que os deputados vão aprovar
uma nova lei ambiental e que a coisa vai arrochar ainda mais para o nosso lado.
O rádio não para de falar nisso. Noutro dia assisti a uma palestra onde um
doutor disse que vamos ter que nos adaptar as novas normas que vem por ai. É a
tal de reserva legal. A rádio disse que quem tiver uma sanguinha na
propriedade, que é o meu caso, vai ter que plantar 30 metros de mata de cada
lado.
O homem falou de mais um monte de normas que vamos ter que
nos adequar. São tantas que nem lembro direito.
Será que estas novas normas também valem para a pessoal da
cidade?
Olha sobrinho, é melhor vender tudo e ir para a cidade
grande. Lá não tem problema nenhum. Com o dinheiro do sitio compro uma casinha,
com luz elétrica, TV sem parabólica e não precisa criar porco, galinha e
produzir alface, leite, queijo, chimia. É só abrir a geladeira e tá tudo ali.
Também vou comprar um telefone, muito útil em casos de emergência, e o hospital
fica perto. Eu e tu vamos ser vizinhos na cidade. Nem vou contar que vim do
interior, senão o promotor vai mandar me prender dizendo que fugi dos meus
“crimes” lá no campo!
O “marreco”, para informação do leitor, é meu tio. Temos
praticamente a mesma idade. Estudávamos juntos na escola Hilário Ribeiro na
comunidade da Barra do Ouro, interior do município de Maquiné. Aos 15 anos eu
decidi ir para a cidade. O Marreco ficou. Ficou com o sitio, cuidando da
plantação, respirando ar puro, sentindo o cheiro da mata, vendo o cintilar das
águas puras dos rios e ouvindo o pampeano cantar das saracuras. Mal sabia ele
que o preço que teria que “pagar” para usufruir deste “paraíso”.
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